[Leitura abreviada da encíclica do Papa Francisco “Laudato Si’”]
Um imperativo categórico! (1)
Em 2015 o Papa Francisco apresentou ao mundo uma encíclica social chamada Laudato Si’ , sobre o cuidado da casa comum. Nela e com ela o Santo Padre espelha e expressa um olhar alargado sobre a existência humana e não só sobre a questão ecológica e ambiental. Este olhar por inteiro passa antes de mais por ouvir os gemidos da terra e dos pobres da terra e sem isso não haverá ecologia integral nem desenvolvimento do género humano.
Este documento papal merece a nossa leitura serena e atenta, quer seja pessoalmente, quer seja em comunidade, até porque traz para o amago da discussão atualíssima em torno das alterações climáticas, o contributo das Religiões em geral, e do Catolicismo em particular. Aliás, o Papa Francisco não duvida que “os deveres em relação à Natureza e ao Criador fazem parte da fé” (64).
A partir deste apelo do Papa podemos e devemos atender à “tremenda responsabilidade” que temos diante da Criação. Uma “ecologia integral”, uma “ética do cuidado” não nos dispensa nem nos exclui por sermos católicos e, aliás, antes pelo contrário. Na mensagem que escrevi para o Natal já expressava isso mesmo. Devemos estar bem cientes da nossa missão para evitar qualquer demissão!
Neste sentido, e até porque se aproxima a passos largos a Quaresma que traz o apelo da metanoia, proponho que a vivamos também acolhendo e inserindo neste processo pessoal a conversão ecológica, tal como nos desafia do Santo Padre, neste importante, mas talvez ainda desconhecido, documento do seu magistério.
Propomo-nos ao longo dos próximos números do Boletim Paroquial dar a conhecer latamente o documento, reforçando e sublinhando alguns desafios e apelos do Santo Padre, sobre a questão do cuidado da casa comum, que deve ser tido por nós como um imperativo categórico! Além destas publicações no Igreja Nova projectamos um momento comunitário de reflexão sobre a temática que depois anunciaremos. Tudo isto deve ser o impulso necessário para a mudança concreta da mentalidade e do agir pessoal e social. Há um compromisso que se torna incontornável e inadiável.
Nem de propósito, acaba de sair (foi apresentada esta quarta-feira) um outro documento do Papa Francisco, na sequência do Sínodo dos Bispos para a Amazónia, que vem reforçar e até cimentar o empenho da Igreja Católica na questão da ecologia, num premente esforço de unir o cuidado com o meio ambiente e o cuidado com as pessoas. Desse modo será possível o desejado impulso fraterno e sustentabilidade verdadeiramente integral.
O cuidado da casa comum (2)
A encíclica Laudato Si, composta por seis capítulos estendida ao longo de 246 números, é o exemplo da acutilância e do alcance do pensamento do Papa Francisco, da sua fidelidade ao Evangelho e da sua permanente abertura ao mundo. Um documento integralmente dedicado à problemática da ecologia e do cuidado da casa comum com o qual o Santo Padre propõe um revolução cultural de alcance planetário e, por isso, vai muito além de um ecologismo ou ambientalismo. Ninguém poderá ficar indiferente aos desafios reais e concretos que não se esgotam nas propostas ao mundo político mas, para constituírem real mudança, devem incluir a normalidade da vida comum de todos os seres humanos.
O título do primeiro capítulo revela, desde logo, os "pés assentes na terra" do Santo Padre, traçando uma visão de conjunto do que "está a acontecer à nossa casa".
É de sublinhar que a análise do estado da casa comum é realista e dura, sem ser apocalíptica, assente no consenso científico, não deixando de apontar a fragilidade das respostas políticas e até o encobrimento dos problemas em alguns casos.
Ninguém estranha que o Papa, na introdução à encíclica, assente o seu magistério nos contributos e nas heranças dos Predecessores que deixaram uma espécie de reserva embrionária da questão ecológica. Ao mesmo tempo, não deixa de olhar S. Francisco de Assis propondo-o como exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral.
Mas entrando na análise do que está a acontecer o Papa Francisco não passa ao lado dos principais problemas que afligem o mundo, entre os quais a poluição associada à disseminada cultura do descarte, assim como a indiscutível questão das alterações climáticas, a questão da água quer no que respeita à sua qualidade, quer no que respeita à sua escassez, sobretudo na vida dos mais pobres.
O capítulo primeiro fica marcado pelo lamento que gera a crítica quanto à fraqueza e ineficácia das reações, sobretudo políticas, no que ao problema diz respeito. Diz o Papa que falta cultura, liderança e até um sistema normativo que estabeleça limites a um paradigma tecno-económico.
No capítulo segundo chamado "O evangelho da criação" o Papa sustenta que as convicções religiosas podem e devem motivar os cristãos a cuidarem da natureza e dos mais vulneráveis. E refere mesmo a tremenda responsabilidade humana diante da Criação.
Após a leitura do relato bíblico da criação faz uma meditação do mistério do universo onde tudo está relacionado. Para o Pontífice o universo é composto por sistemas abertos que entram em comunicação e a própria escritura não deixa de evidenciar esta tríplice relação vital entre Deus, o Próximo e a Terra.
Ao ler estes dois primeiros capítulos e na linha da conversão ecológica a que nos podemos votar na quaresma que está a iniciar, deixo duas perguntas para exame de consciência:
- A minha vida é assolada em que medida pela cultura do descarte?
- A minha visão da natureza assenta no desígnio da gratuidade e do dom da terra com os seus frutos a todos?
Uma ecologia integral (3)
No Capítulo III da Laudato Si’ o Papa Francisco identifica “a raiz humana da crise ecológica”, assente sobretudo nas lógicas depredatórias do paradigma tecnocrático, que levam a destruir a natureza e explorar as pessoas e as populações sobretudo as mais vulneráveis. Para Francisco o mundo vive fascinado por este paradigma que promete um crescimento ilimitado mas que assenta na “mentira da disponibilidade infinita dos bens do planeta que leva a ‘espremê-lo’ até ao limite e para além do mesmo”.
O excesso de antropocentrismo (uma grave patologia moderna), ou seja o ser humano que não reconhece sua correta posição em relação ao mundo e assume uma posição autorreferencial, centrada exclusivamente em si mesmo e no próprio poder, origina muita da atual lógica do «descartável» que justifica todo tipo de descarte, ambiental ou humano que seja, que trata o outro e a natureza como um simples objeto e conduz a uma infinidade de formas de dominação.
Nesta sequência a encíclica aborda a questão do relativismo prático, consequência da patologia do antropocentrismo, que se manifesta em duas questões cruciais para o mundo de hoje: a necessidade de defender o trabalho “como uma necessidade” que “faz parte do sentido da vida” e a inovação biológica a partir da pesquisa sobretudo colocando limites à “intervenção humana sobre o mundo vegetal e animal”.
No capítulo IV chamado “uma ecologia integral”, encontra-se, de certo modo, o coração de toda a encíclica, que assenta no princípio de “que tudo [no mundo] está intimamente relacionado”.
A proposta do Papa Francisco é um novo paradigma de justiça que põe em jogo também uma ecologia das instituições. Com exemplos concretos, o Papa reafirma o seu pensamento uma vez que defende uma ligação entre questões ambientais e questões sociais e humanas que nunca pode ser rompida.
Além disso, a ecologia integral é inseparável da noção de bem comum, que deve significar o compromisso em fazer escolhas solidárias com base “numa opção preferencial pelos mais pobres”, que é a melhor maneira para deixar um mundo sustentável às gerações futuras.
Esta ecologia integral envolve a vida diária e quotidiana, para a qual a encíclica reserva uma atenção específica em particular em ambiente urbano, destacando a necessidade de melhoria da qualidade da vida humana no que respeita a espaços públicos, moradias, transportes.
Neste capítulo, e a propósito da justiça intergeracional, Francisco cita os Bispos de Portugal para lembrar que “o ambiente situa-se na lógica da receção. É um empréstimo que cada geração recebe e deve transmitir à geração seguinte”.
A partir da leitura destes dois capítulos, ressoam estas três perguntas:
- A minha visão da Criação está inquinada pelo antropocentrismo moderno?
- Como entendo e acolho a visão da “ecologia integral” proposta pelo Papa?
- Sinto que estou a transmitir o tesouro da Criação às gerações vindouras?
Educação para a ecologia integral (4)
A “Laudato Si” do Papa Francisco não se fica pelas análises da realidade circundante, nem se esgota nos alertas em todos os quadrantes quanto às lógicas depredatórias do modelo tecnocrático em que assenta a nossa sociedade. Francisco dedica o quinto capítulo a “algumas linhas de orientação e ação” procurando responder à pergunta sobre o que devemos fazer.
Reconhecendo que a Igreja não pretende definir as questões científicas, nem substituir-se à política, o Santo Padre convida «a um debate honesto e transparente para que as necessidades particulares ou as ideologias não lesem o bem comum».
O Papa Francisco não tem medo de fazer um julgamento severo sobre as dinâmicas internacionais recentes ligadas às questões ambientais. Nesta linha evidencia a importância de processos de decisão honestos e transparentes, sem corrupção de qualquer espécie. Surge, pois, natural o apelo dirigido àqueles que detêm cargos políticos, para que se distanciem da lógica «eficientista e imediatista», ao mesmo tempo que alerta para a necessidade de processos políticos transparentes e sujeitos a diálogo, que evitem a corrupção, que «esconde o verdadeiro impacto ambiental dum projecto em troca de favores».
O último capítulo vai ao cerne da conversão ecológica sugerida pelo Pontífice, para reformular hábitos e comportamentos. A educação e a formação são, por isso, desafios centrais, apostando numa mudança de estilos de vida e exercendo pressão salutar sobre decisores mundiais.
Não é possível subestimar a importância de percursos de educação ambiental capazes de incidir sobre gestos e hábitos quotidianos, da redução do consumo de água, à diferenciação do lixo até «apagar as luzes desnecessárias».
Para Francisco não há duvida que «uma ecologia integral é feita também de simples gestos quotidianos, e que a conversão ecológica será mais fácil a partir de um olhar contemplativo que vem da fé.
A terminar, de novo, o Santo Padre apresenta os modelos de santidade que nos acompanham neste caminho ecológico que passa pela sobriedade e pela humiladade. Para além de São Francisco de Assis, designado «o exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral, vivida com alegria», a encíclica recorda também São Bento, Santa Teresa de Lisieux, S. João da Cruz e o Beato Charles de Foucauld. O Pontífice termina o documento com duas belíssimas orações.
Perante os dois últimos capítulos, urge perguntar:
- Globalmente: Assistimos ao necessário empenho internacional, nacional e local para dar resposta aos desafios ambientais que enfrentamos?
- Pessoalmente: Estou empenhado numa atenção real e concreta, que não dispensa os meus pequenos gestos diários na preservação da Criação?
Compromisso pela Casa Comum e pela Ética do Cuidado (5)
O cuidado da casa comum requer uma união de esforços que não pode deixar ninguém de fora. Muito menos os crentes e, de entre todos, nós, os cristãos! Neste sentido, depois de, ao longo de vários números do nosso Boletim Paroquial, termos vertido algumas das ideias fulcrais apresentadas pelo Papa Francisco na Laudato Si’, estamos em condições de apresentar a todos os paroquianos o Compromisso pela Casa Comum e pela Ética do Cuidado.
Trata-se de um texto já subscrito por Instituições religiosas, sociais e políticas cuja finalidade é ser assinado por quantos aceitem o seu conteúdo e se queiram implicar e aplicar pessoalmente na sua concretização. Queremos, deste modo, contribuir ativamente para a consciencialização e o compromisso dos nossos paroquianos, em particular, na defesa da Criação.
Assim sendo, na Paróquia de Santa Eulália de Fafe, logo que as condições sanitárias, em virtude da atual pandemia da COVID19 o permitam, será possível assinar este compromisso.
Por agora, neste que é o Dia da Terra, que se comemora há 50 anos, damos a conhecer o texto:
Sendo certo que as influências tradicionais nos moldam o olhar e consequentemente o modo como vivemos, existe uma ligação fundamental entre o que fazemos e o que isso faz ao Planeta, ou seja, à “casa que é comum” que, longe de ser uma qualquer propriedade ou recurso de quem quer que seja, é acima de tudo a condição de possibilidade de existirmos, vivermos e aprendermos a cuidar.
Assim, e dada a interdependência fundamental da Vida, vislumbra-se a necessidade de uma revolução cultural, que transforme homem – velho, desatento e pretensioso – num sujeito ecológico que entende e experiência, o ethos como “morada” global.
Carecemos de uma sabedoria da “casa comum”, onde as realidades surgem tais como são, sendo a Ecologia esse mesmo “estar”.
Além do estudo de uma rede natural de vida e da revisão do lugar do homem na natureza, precisamos de (re)encontrar o lugar da Natureza no humano.
É isto que significa “ser” humano: estar em relação e interdependência, ser no mundo e com o mundo.
Tradições religiosas diferentes abordam de forma diversa as mesmas preocupações perante alterações ambientais radicadas em práticas que contrariam os equilíbrios dos eco-sistemas.
Comprometemo-nos a tudo fazer para inverter estas práticas depredatórias, promovendo uma compreensão ecológica associada a valores éticos.
Sendo imperioso e urgente cultivarmos o sentido da sabedoria fraterna e da compaixão consciente, implicamo-nos na ultrapassagem de apegos redutores que produzem práticas egoístas.
Assumimos a vontade, perante nós mesmos e todo o colectivo, de juntar as nossas vozes para que TODOS e cada um, pessoal ou institucionalmente, cooperem pela paz radicada na compaixão por toda a vida planetária, de modo a que seja estabelecido um programa ecológico eficiente, pleno de impulso fraterno e sustentabilidade verdadeiramente integral.
[Pe. José António Carneiro]
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